meu amor,
tento escrever - esta mesma que agora componho - uma carta
de amor há vários dias e não consigo.
o céu está cinzento, não azul nem verde da cor do mar, e as
ideias não me fluem na ponta dos dedos como é hábito. fico, assim, volúvel como
essa maldita cor do nada, nem preto nem branco nem água nem vinho.
como dizia um certo Pessoa, são ridículas todas as cartas de
amor. talvez receie ficar mais uma vez mal no teu retrato.
hoje em dia nem cartas se escrevem, quanto mais cartas de
amor!...
estou em crer que o problema reside na falta de prática. copio,
dos mais jovens, o hábito de escrever sms de amor – essa espécie de nano-cartas
que hoje em dia inundam a caixa postal móvel, minha e tua e tua e dela.
jamais escrevi cartas de amor. digo e repito para que ouças
bem, melhor, claramente leias: esta é a primeira carta de amor que redijo em
toda a minha vida, quem sabe talvez também a última.
não sei se terei tempo para viver um outro amor. foi amor o
que vivemos, não foi, Ana, pergunto-me ainda antes de terminar tentando
clarificar os tempos que partilhámos. o tempo passa e o futuro pretérito já
voou para além de nós (dois). o amanhã é improvável, sempre. num momento,
estamos seguros que a colheita será farta; no instante seguinte logo
compreendemos que só nos resta esperar que a próxima seja igual ou melhor à que
ainda agora prevíamos.
com ela, com esta carta, ultrapasso a distância da nossa ausência.
sei-te longe, tão longe como jamais te senti.
ouço lá ao fundo, na noite, os cães a ladrar latidos de desespero.
assinalam gente que passa na rua, ao luar fosco da noite tardia, com o coração
despido de ternura e as mãos cheias de linhas que ao vazio conduzem.
fica-me uma quase última dúvida (espero que não te magoe.
sempre evitei ou tentei evitar magoar-te, sabes isso, não sabes, Ana?). talvez
a dificuldade que sinta em escrever esta carta venha lá mais do fundo e exista
porque te não ame.
a assim ser, será esta uma carta de amor?
do princípio ao fim dos tempos
Joaquim
Art Pepper - Diane
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