sexta-feira, 27 de abril de 2012

ouço Gillian


ouço Gillian
e a música escorre-me corpo abaixo.

tão leve a poeira das estrelas, enorme
é o peso que exerce sobre mim.
parece-se contigo
quando me amas e deslizas, suave,
na minha pele,
em momentos de torpor abandonado.
não estou adormecido.

apetece-me só ficar deitado e olhar,
abraçado,
pela janela do teu quarto as estrelas
bem longe, lá ao fundo,
minúsculos pontos que são os nossos.
vejo tão longe, tão escuro que o fundo do mar
chega a estar ali bem perto, à mão de semear.

é só mais um minuto, só mais um, e a pressão e a tensão
do teu corpo, das estrelas e da música de Gillian
mantêm-me acordado,
outra vez pronto a amar.
ouço o dedilhar da guitarra e respiro fundo.
é urgente:
não posso deixar de te beijar!

Gillian Welch - Revelator

quinta-feira, 26 de abril de 2012

nascer



nascer.
nasço.
nasci.
nasço a todo o dia
e a toda a hora.

quando nasci,
da primeira vez em que nasci,
quero dizer,
nasci com demora.
foi um tempo
de desora.

não nasci
no mês de abril
de sol e flores
e águas mil.
foi em setembro.
nasci no setembro
dos campos secos
e devastados,
já colhidos e fresados.

sou já de ontem,
não nasci por agora,
mas tanto me faz que hoje
seja julho, dezembro ou fevereiro
que renasço
também por ora:
em cada minuto, em cada segundo,
em cada hora.

nascer…
nascer, nasci.
vi a terra,
vejo o mar,
ouço os pássaros na primavera
em paixão despudorada,
sinto em teus gestos,
quando me tocas,
a graça e a candura da tua pele,
provo o sal de teu sangue, suor e lágrimas
de amor,
infinito amor
de quem também me imaginou
e ao mundo quis trazer;
mas nascer é tão comprido
que nem sequer termina
ao morrer.

imagem: Misha Taylor

Miles Davis - Time after time

quarta-feira, 25 de abril de 2012

oração



inspira-me, Liberdade,
nesta noite de fantasmas.
dá-me a mão, neste caminho,
em que sigo tacteando
o cheiro da fantasia
entre sombras de néon.

guia-me, Liberdade,
nestas ruas pejadas de gente.
orienta-me nas calçadas dos passeios,
nas esquinas e recantos da cidade
em que, já tarde e descontraídos,
os amantes consomem beijos
de circunstancial fortuna.

inspira-me, inspira-me…
beija-me, Liberdade!
viaja comigo na festa que é a vida.
quero respirar
teu corpo, teu sangue, tuas águas,
teu cheiro.
quero-te para sempre minha,
Liberdade!

imagem: Olivier Perrin

Grant Green - Street of Dreams

quinta-feira, 19 de abril de 2012

nosso puzzle



corte, recorte,
encaixe.
  
num lance bate certo,
noutro bem menos do que isso.

viro, reviro... 
torno a virar.
não é, 
mas soa-me a canção popular.

ora graves, ora agudos
são estes os ângulos
aqui e além obtusos
de tantos instantes fixados
para mais tarde
recordar
com o teu ou o meu olhar.

são milhares
os fragmentos da imagem (im)perfeita
construída
em tempos de duvidoso azulcinza.

olho para um deles,
aqui bem perto de mim,
e logo me ocorre
o sabor daquele escorrido beijo
entre doiradas searas
há tantos anos acontecido.

vejo outro mais além.
devagar arrasto a mão até ele:
são tépidas as águas salgadas
em que, sereno, mergulho
e me fundo
até ao fundo do teu ser.

ali, quase no centro de todas as peças,
num outro retalho,
ficam as pétalas brancas do jasmim.
transportam no ar, ainda,
estas folhas,
o suave e doce aroma
da tua pele
até mim.

na penumbra do final de tarde,
agarro e tacteio
mais uma peça.
num segundo apenas,
desliza-me entre os dedos
o calor do teu corpo
sob aquela manta xadrez 
de pura lã de Cachemira.

corto, 
recorto e encaixo mais uma e outra vez.

passa o tempo devagar.
tão simples de terminar,
este obsessivo puzzle
não pára nunca
para se fixar.

imagem: Magali van de Wiele

John Coltrane - I see your face before me

quarta-feira, 18 de abril de 2012

o mar entre nós dois


estou aqui; e tu,
aí.

longe, bem longe de mim.

há um oceano entre nós dois.
é tanto o que nos une;
mais ainda
o que nos separa.

de um pequeno,
ínfimo glóbulo de orvalho em repouso
na folha da laranjeira
pela manhã,
o desassossego
converteu-se num abismo
onde os continentes e as mágoas
se afundam.

com o aproximar
da madrugada,
a gota nasceu
em destino inadiável.
pouco a pouco
juntou-se
a mais uma e a mais outra,
fez-se pérola
e como brilhante fio de virgem prata
caiu.
afundou-se na terra escura.
esfumou-se.

mas mil outras gotas
oriundas dessa deslumbrante copa
se lhe seguiram:
dia a dia,
mês após mês,
essa gota, essa gotícula evoluiu
em má sina improrrogável.

abaixo da superfície,
de todos escondida,
essas tão tristes lágrimas
deram origem a um lago
que depois se fez corrente
e essa torrente
depressa
fugiu de nossas mãos.
esse tudo essencial corria,
escapava-se entre os dedos,
todo ele
excepto uma finíssima película de água
onde, sequiosos,
de tempos a tempos
íamos beber
do nosso amor.

era já uma ribeira
de imparável caudal.
era só mais uma gota
e logo, logo
estava aí a enxurrada.

ribeira, ribeira, ribeira,
flui o rio, faz o mar,
acaba, assim,
a conjugação deste verbo
amar.

imagem: Mário Cesariny

Kenny Wheeler - What now?
http://www.youtube.com/watch?v=ppeE0HB5gvg

terça-feira, 17 de abril de 2012

carta de amor nº 1


meu amor,
tento escrever - esta mesma que agora componho - uma carta de amor há vários dias e não consigo.
o céu está cinzento, não azul nem verde da cor do mar, e as ideias não me fluem na ponta dos dedos como é hábito. fico, assim, volúvel como essa maldita cor do nada, nem preto nem branco nem água nem vinho.
como dizia um certo Pessoa, são ridículas todas as cartas de amor. talvez receie ficar mais uma vez mal no teu retrato.
hoje em dia nem cartas se escrevem, quanto mais cartas de amor!...
estou em crer que o problema reside na falta de prática. copio, dos mais jovens, o hábito de escrever sms de amor – essa espécie de nano-cartas que hoje em dia inundam a caixa postal móvel, minha e tua e tua e dela.
jamais escrevi cartas de amor. digo e repito para que ouças bem, melhor, claramente leias: esta é a primeira carta de amor que redijo em toda a minha vida, quem sabe talvez também a última.
não sei se terei tempo para viver um outro amor. foi amor o que vivemos, não foi, Ana, pergunto-me ainda antes de terminar tentando clarificar os tempos que partilhámos. o tempo passa e o futuro pretérito já voou para além de nós (dois). o amanhã é improvável, sempre. num momento, estamos seguros que a colheita será farta; no instante seguinte logo compreendemos que só nos resta esperar que a próxima seja igual ou melhor à que ainda agora prevíamos.
com ela, com esta carta, ultrapasso a distância da nossa ausência. sei-te longe, tão longe como jamais te senti.
ouço lá ao fundo, na noite, os cães a ladrar latidos de desespero. assinalam gente que passa na rua, ao luar fosco da noite tardia, com o coração despido de ternura e as mãos cheias de linhas que ao vazio conduzem.
fica-me uma quase última dúvida (espero que não te magoe. sempre evitei ou tentei evitar magoar-te, sabes isso, não sabes, Ana?). talvez a dificuldade que sinta em escrever esta carta venha lá mais do fundo e exista porque te não ame.
a assim ser, será esta uma carta de amor?

do princípio ao fim dos tempos
Joaquim

Art Pepper - Diane

segunda-feira, 16 de abril de 2012

De como a Vida e a Morte, o Bem e o Mal, a Natureza e a Graça se confundem



De como a Vida e a Morte, o Bem e o Mal, a Natureza e a Graça se confundem

The Tree of Life (A árvore da vida), de Terrence Malick, inicia-se com um discurso que coloca em questão a dualidade, ou melhor, o maniqueísmo entre a Natureza e a Graça. Se aquela representa o mal, pela imposição da força sobre tudo e todos, estoutra impele-nos para o Bem, para a aceitação e a sujeição à realidade que nos circunda, mediante a constante presença do amor, e do perdão.
Após a colocação de uma questão bíblica de introdução surge-nos logo nos minutos iniciais a morte, a que não assistimos, do personagem principal, e de que apenas ficámos a saber, por via indirecta, mediante a leitura de uma carta, entregue à pressa mas como que a medo de dar uma má notícia, por um carteiro que logo logo se afasta, que morre ainda jovem - suicídio? guerra? acidente? desacato? homicídio? (diversas possibilidades ficam em aberto, embora a primeira me pareça a mais crível, dado tratar-se de um personagem um tanto depressivo.
Neste caso, o realizador apresenta a mãe do rapaz rebelde e insolente como sendo o bem. Companheira permanente, trata dos filhos com todo o esmero e dá-lhes o mimo e atenção que precisam, perdoa-os mesmo quando sabe que cometeram erros potencialmente demasiado perigosos. Já o pai, tradicional chefe de família, sempre em busca de mais sucesso (e dinheiro, poi sé assim que ele se mede) é um homem ausente que tenta impôr permanentemente a sua presença. Castiga os filhos por tudo e por nada, sobretudo o tal, o mais velho de 3 irmãos, que com o segundo mantém uma ligação extremamente forte de confiança (amor, poder-se-á dizer), embora tenha também o intuito de, por essa via, criar rapazes fortes capazes de singrarem na vida: "Se formos bons, estamos tramados" é o seu lema.
O pai trabalha no exterior e passa a vida fora de casa. Os filhos vivem rodeados pela mãe, que os inspira e lhes dá a conhecer Deus.
É esse deus, fonte de vida, mas também poder maior sobre ela, que é aqui colocado em questão ao longo de todo o filme. No meu ponto de vista, é-nos permitido considerar uma e outra questão como válidas. O autor não impõe a presença de Deus como determinante no rumo da vida parecendo que o acaso e as circunstãncias, no fim de contas, possam ser tão ou igualmente importantes como a sua existência para a determinação daquilo que a vida é.
Malick alterna belíssimas imagens da vida familiar americana de um bairro de classe média, talvez dos anos 40, com múltiplas outras referências ao fogo, à água, à terrra , ao ar, os 4 elementos simbólicos da vida desde há milhares de anos. Aliás, apresenta mesmo cenas da evolução da vida na Terra, fusões celulares, vulcões em erupção, tempestades no mar, imagens do céu sereno e tranquilo como elementos que, em certa medida, se confundem e estão sempre presentes e influenciam a nossa vida quotidiana, neste caso dos próprios personagens.
O narrador é o irmão do meio, o tal com que o mais velho se entende, apesar de por vezes o assustar e lhe fazer sentir medo. Este tem uma vida de aparente sucesso numa grande cidade e empresa, mas nesse dia em que toma conhecimento da morte do irmão fica também a saber das enormes dificuldades em que a sua empresa está metida.
Se já quase no final todos os personagens se cruzam, uns com os outros e nas várias idades que os vemos representar, traduzindo-nos de forma maravilhosa uma imagem da presença imutável da importância das nossas memórias ao longo da vida, deixa, no entanto, o filme em aberto, ou pelo menos assim parece, em relação à saída que dá a esse tal irmão do meio, clarificando as incertezas sobre o futuro na medida em este "a Deus pertence".



imagem: Terrence Mallick


Alexandre Desplat - The tree of lime, ost preview
http://www.youtube.com/watch?v=3QDVpW9bBxg