esta minha vizinha, de dois andares abaixo, deixa-me o corpo em água.
desde que para aqui se mudou, há cerca de um mês atrás, que tenho
as noites ocupadas sem dormir.
de
cada vez que de dia me cruzo com ela, o que acontece quase todos os
dias, é certo e sabido que perco o sono à noite. não interessa se
é dia de sol ou dia de chuva; o certo é que não vou dormir, se a
vir.
por
vezes, quando saio, pela manhã, nem sei se me cruze com ela, ou se
me descruze. sei lá se é do sorriso ou do olhar, do leve oscilar da
sua loira e farta cabeleira ou do seu menear.
sei
que, é certo e sabido, quando, pela manhã, passo por ela... à noite perco o sono
e não mais consigo dormir.
depois,
durante o dia, pareço até semi-adormecido; mas não. estou apenas
meditabundo, imaginativo a pensar em como hei-de arranjar uma forma
de dormir essa noite. como hoje! é que, pela manhã, quando saía
para o trabalho, me cruzei mesmo com a vizinha loira que vive já
ali, bem perto, apenas 2 andares abaixo de mim.
ao
fim do dia, no regresso a casa, vou ainda com ela, sedosa e
transparente, no olhar. quem me olha, apesar do silêncio, sempre me
diz:
“estás
feliz, António! vê-se bem que já conheces mais que a cor do seu
cabelo ou a cor da sua pele”
ou,
então, acabam por deixar sair com um cúmplice piscar, um
“estás
feliz, António! diria que, esta noite, jantaste em sua casa. talvez
até já… conheças toda a casa.”
penso,
então, para mim, como a leitura de palavras de silêncio pode ser
tão inexacta e como tantas vezes somos levados ao engano por
palavras da expressão.
ainda
um tanto preocupado com a forma como ocupar esta noite, entro a
soleira do prédio. avanço mais uns passos e vejo a minha vizinha de
dois andares abaixo, bastante menos leve do que pela manhã,
carregada com o peso das canseiras e das compras do dia:
dás-me
aqui uma pequena ajuda, por favor – pede-me ela, enquanto me olha,
inquisitiva, preparando-se para entrar no elevador.
peguei
nos sacos e segui-a devagar, com um sorriso confiante sobre o olhar e
o decote da camisa entreaberta. pressionei no número sete. quando
chegámos, abriu a porta e perguntou-me:
“como
te chamas?”
“o meu nome é António.”
“pois
então anda daí, António! esta noite jantas comigo.”
Imagem:
ciência hoje
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